No longínquo ano de 2022, foi dado início ao projeto Minha Pelotas fantástica. Uma parceria entre a Fusão Latina e a artista Fernanda Moreira, onde foram criadas uma série de ilustrações, imaginando locais característicos de Pelotas, como cenários fantásticos saídos diretamente de algum livro ou filme medieval.
Foram elaboradas um total de nove artes mostrando como locais simples da cidade de pelotas, podem se tornar mágicos com uma simples troca de visão. Fernanda Moreira é nascida e criada em Pelotas e sempre conviveu com estas vistas durante toda a vida.
Foram escolhidos pela artista, 8 locais que fizeram parte de sua história. O Antigo Banco do Brasil, o interior do Casarão 8, a Torre do Relógio, a Catedral Metropolitana São Francisco de Paula, o Grande Hotel, a Fonte das Nereidas da Praça Coronel Pedro Osório e o Museu da Baronesa foram desenhados e imaginados como se fossem de um universo fantástico, que era como a autora os via quando criança.
No mesmo ano, A Livraria Vanguarda se juntou com os idealizadores iniciais do projeto para dar início ao Concurso Pelotas Fantástica. Em comemoração do aniversário de 210 anos da cidade de Pelotas, o concurso consistia em montar um conto de até duas páginas baseadas nas obras de Fernanda. Pedimos desculpas pela demora na divulgação do resultado de nosso concurso. Hoje gostaríamos de divulgar os três vencedores do concurso Minha Pelotas Fantástica!
Pedro Fassa (Vagalumes) – Natural de Pelotas, Pedro é cineasta, ator, roteirista e artista no geral. Atualmente dirige diversos projetos artríticos através de sua produtora “Phantasia”. Escreveu sobre a torre do relógio.
Lavínia Santos (Conto da torre) – Nascida e criada em Pelotas, a menina de apenas 20 anos já escreve ficções a mais de oito anos. A estudante de psicologia, viu no concurso a oportunidade e escrever sobre os monumentos que cresceu vendo à sua volta. Escreveu sobre a torre do relógio.
Jerônimo Bruschi (Pessoas, cidades e bancos) – Nascido em Porto Alegre, mas criado desde os quatro anos em Pelotas, Jerônimo sempre teve grande influência das artes em sua vida. Filho de uma antropóloga e de um artista plástico, sempre teve uma vontade artística inata dentro de si. Viu no projeto uma oportunidade de por para fora.
Abaixo você confere os contos dos três vencedores do concurso na íntegra.
Vagalumes por Pedro Fassa
Peixe. Eu sempre saio com um cheiro horrível de peixe.
Fazem alguns anos que eu trabalho numa peixaria do Mercado Público em Pelotas.
Mas, de acordo com todos os meus amigos, eu nem preciso dizer isso, já que o cheiro forte
fala por si. Ele se agarra em toda e qualquer roupa que eu coloque e não sai de jeito
nenhum, não importa o quanto eu lave. Essa provavelmente é a parte mais chata do meu
serviço. Mas eu não reclamo, eu e meu irmão mais novo somos só mais uma geração da
minha família que trabalha por aqui, na peixaria que, apesar de ninguém saber, é
provavelmente a mais importante da cidade.
Já são seis e meia, hora de fechar. Não tem quase ninguém em volta, o incessante
movimento dos carros que percorrem a hora do rush acalmou-se e as nuvens, iluminadas
por trás pelos últimos raios de sol do dia, começam a pintar o céu de preto. Tiro meu avental
e vou pegar minhas coisas. Eu nem deveria estar aqui, o idiota do meu irmão realmente
não tem nenhum senso de responsabilidade. Ele sabe que o nosso serviço é essencial, e
ainda assim prefere tirar folga pra ver a namorada. Seria fácil se meus pais ainda pudessem
trabalhar aqui, mas eles estão velhos demais, e esse é um trabalho que requer força física.
Agora, somos só eu e ele. Contratar outra pessoa traria um grande risco pra toda a nossa
comunidade, talvez até pro nosso estado inteiro.
Já estou com a minha mochila, pronto pra ir embora, mas eu percebo alguma coisa
estranha. Na sala dos fundos, o alçapão ficou entreaberto. O idiota do meu irmão andou
fazendo as coisas pela metade de novo. Talvez seja melhor checar… Não, não digo o
alçapão, mas o nosso… amigo… que mora nas catacumbas do Mercado Público. É por isso
que somos peixeiros, ele só come peixe e em grandes quantidades. Nós precisamos deixa-
lo contente e bem confortável lá embaixo, o mundo não é mais tão generoso e uma saída
definitivamente deixaria a situação muito mais complicada.
Abro a porta do alçapão e começo a descer as escadas de pedra em meio a
escuridão do fosso. Meus avós decoraram essa área: é cheia de fotos e decorações da
antiga Pelotas, aquela quase esquecida pelo tempo. Entre elas, há fotos e pinturas antigas
retratando o nosso amigo. Os antigos o deixavam bem mais intimidador, mas isso talvez
seja impressão minha, já que eu convivo com ele desde que nasci, e uma primeira
impressão não seria a melhor forma de compreendê-lo. Acho que os primeiros cuidadores
dele foram meus trisavôs, lá na época da Guerra dos Farrapos. Os Farrapos costumavam
contar grandes histórias sobre como ele dizimava exércitos imperiais inteiros com poucas
labaredas, mas é óbvio que isso é mentira, já que nosso amigo não tinha motivo pra se
preocupar com uma situação tão pequena. Mas… se ele tivesse entrado em batalha
novamente, com algumas labaredas ele não só teria dizimado exércitos, mas talvez o
império brasileiro como um todo. Ele foi feito para lutar batalhas muito maiores do que
meros humanos são capazes de compreender.
Mas não devo ficar relembrando o passado agora. O melhor é conferir se todas as
trancas estão adequadamente colocadas. Desço cada vez mais fundo nas catacumbas até
chegar ao portão final. Tudo parece estar bem trancado, mas é melhor entrar no salão
principal para conferir.
Meu. Deus.
O acesso no teto, usado só para emergências, foi destruído. As madeiras estavam
quebradas, provavelmente foram deteriorando ao longo dos tempos. Ele não estava mais
lá.
Saio correndo escada acima. Já é possível ouvir os berros da multidão se
aglomerando em volta do mercado para ver a criatura. É lógico que eles estão com medo:
a magia dessa cidade só é vista por aqueles que olham de perto, e para os olhos dos leigos,
ela pode ser muito intimidadora.
Cheguei no topo e posso ver com clareza: as pessoas observam a situação com
horror. Ele está agarrando o relógio com as patas traseiras, e com uma mão se apoia na
cúpula, esticando seu longo pescoço e abrindo completamente as suas gigantescas asas
para chegar o mais alto possível. Em meio ao caos pude ouvir alguém gritar: “estamos
todos mortos!” Isso causou impacto na multidão, que ficou consideravelmente mais agitada.
Era esse o meu medo, que a mera visão do nosso amigo fosse causar pânico
generalizado na nossa cidade. É óbvio que eles o veriam como um monstro, depois de
tantos produtos midiáticos que mostram a espécie dele como tal. Mas a verdade é que
nosso amigo veio aos pampas há séculos atrás, para nos salvar de um grande mal, que
nós jamais poderíamos compreender. O poder dele é tão grande, que dizimar a nossa
população não desperta nem um pouco o interesse dele. Ele sempre preferiu as coisas
simples do nosso mundo, e por isso que ele finalmente decidiu usar toda a sua força para
sair das catacumbas.
Ele saiu para ver os vagalumes brilharem nos céus do sul.
Conto da torre por Lavínia Santos
Ele checou o relógio de bolso pela terceira vez na última meia hora, voltando a dar
voltas pelo quarto alugado no Gran Hotel da cidade. Sobre a mesa de carvalho, ao lado
da luminária estava à mensagem que deixara o coração ansioso, um pequeno
guardanapo quadrado no qual uma breve instrução havia sido escrita com uma caligrafia
bem desenhada, poucas palavras. Tudo o que ele precisava.
Ainda faltavam oito minutos e levaria menos de cinco para que chegasse até a
torre do relógio, controlava o tempo cuidadosamente, não podia correr risco de perder
nem um segundo.
Aproximou-se da janela para olhar o movimento, a noite seria clara e quente, o sol
ainda não se pusera totalmente e a praça já estava movimentada, as ruas atulhadas de
automóveis e as pedras das calçadas pareciam refletir o calor do dia de volta para os
transeuntes.
Resolveu que não havia mal em chegar um pouco mais cedo, arrumou o cabelo em
frente ao espelho e dobrou o guardanapo cuidadosamente, guardando-o no bolso do
paletó antes de deixar o quarto para trás.
Enquanto caminhava pela rua movimentada, se atentava a cada detalhe da vida ao
seu redor. Analisava o centro da cidade como quem analisa uma obra de arte, prestando
atenção em cada cor, cada som, cada aroma que o alcançava e que compunham a mais
bela arte em suas memórias. Esse não era o seu tempo favorito, mas não importava, a
vida era bela aonde quer que ele estivesse, quando estivesse.
Ao chegar à torre, sorriu.
Seus olhos se adaptando aos poucos a realidade, quebrando o véu que protegia a
magia daqueles para os quais ela deveria se manter secreta. Admirou a torre alta, seus
relógios, seu farol, suas cores, todas envolvidas pelo pó brilhante que despencava dos
céus. Estava quase na hora, o sol já se escondia atrás dos prédios mais baixos, suas
sombras já acentuadas nos pilares e telhados do mercado.
Ele se aproximou das escadas que levavam ao topo da torre, a magia que envolvia
o monumento, agora o envolvendo também. Conferiu o horário e começou a subir, um
passo após o outro lentamente, sentindo a magia correr por suas veias, quente e
formigante.
Os ponteiros nas faces dos relógios lá em cima começavam a se mover, cada qual
marcando o seu próprio horário, cada qual girando para um lado, em sua própria
velocidade, em sua própria realidade. Conforme subia, sentia o corpo mudando, primeiro
as costas abrindo espaço para que o par imponente de asas se libertasse entre as
omoplatas; a pele grossa cobrindo a outra. Suas roupas caiam em farrapos conforme
mais alto se encontrava, enquanto os relógios continuavam girando. Quando alcançara o
topo, a transformação estava completa, e ele enfim estava livre de sua casca. Do corpo
que desejara.
No chão, 23 metros abaixo, um par de sapatos pretos brilhantes pisava em um
guardanapo que despencara do céu, com letras bem desenhadas indicando
Mal posso esperar pela próxima aventura!
— Ana
A jovem olhou para cima, com o sorriso mais sincero que possuía. Segurou o
chapéu para que não caísse e chamou pelo dragão que se equilibrava no topo da torre.
Os olhos vividos do ser a encararam, tão profundamente para analisar sua alma,
reconhecer sua magia.
— Boa noite, velho amigo. — ela saudou.
— Boa noite, doce menina. — o dragão respondeu, sua voz estrondosa ecoando
nos pensamentos da jovem moça, através da ligação que muitos anos lhes permitiam —
Há muitos dias que não a vejo, como foi à aventura?
Ela deu de ombros.
— Estou ansiosa para a próxima.
— Para onde dessa vez?
— Não é para onde, é para quando… Para o futuro.
O dragão sacudiu as asas com uma força capaz de fazer as árvores próximas
balançarem, para as muitas pessoas que aproveitam o anoitecer no mercado central, não
deve ter sido mais do que uma brisa noturna. Era cômico, e um pouco triste, para a jovem
Ana, pensar que todos aqueles que olhavam para cima não eram capazes de ver a
criatura esplêndida que agora movimentava os ponteiros de uma das faces do relógio da
torre em uma velocidade constante. Pobre das pessoas sentadas ali, fadadas a viverem
uma única vida.
— Conhece as regras, precisa me contar uma história para poder viajar. — lembrou
o dragão.
— Eu sei, eu sei… Encontre-me para o café da manhã, e lhe contarei todas as
histórias que quiser.
Ele riu, e com um rápido balançar do rabo, o portal sob a torre se abriu e a mulher
desapareceu engolida pelas luzes ofuscantes.
O dragão voltou a admirar o horizonte, sem sair do seu posto como o guardião da
torre, esperando pelos próximos viajantes. Distraindo-se com as conversas e risadas das
pessoas que passavam por ali e contando as horas para o amanhecer, quando poderia
vestir sua pele de homem e ouvir historias sobre as aventuras que jamais poderia ter.
Pessoas, cidades e bancos por Jerônimo Bruschi
O mundo é regido por lendas passadas e sonhos futuros. O mundo, por outro lado,
é composto de pessoas, cidades e bancos. Logo, pessoas, cidades e bancos sonham
futuros e recordam passados. A minha vó era uma pessoa, então, ela tinha seus sonhos e
suas lembranças, assim como o antigo banco do lado da minha casa. No entanto, não
posso dizer o mesmo sobre a cidade. Ela deixou de sonhar.
“Traga duas moedas de cobre para o banqueiro e fale: ‘A moeda que te dá ofício
me dá a vida.’” Minha vó contava suas lendas enquanto me segurava no colo. “Assim, ele
te abrirá a escadaria secreta. Você será recebido por dragões bondosos e fadas travessas
que te mostrarão o maravilhoso mundo em que vivem. Palácios de reis malucos, florestas
de cogumelos, torres de magos ermitões, oceanos banhados em ouro… tudo logo
embaixo do banco.” Perguntei se lá chovia chocolate e recebi como resposta ainda mais
empolgação. “É claro que sim! Mas, depois de visitar todo o reino encantando, você só vai
poder levar uma coisa como recordação pra casa. Nada mais.” As lendas da minha vó se
mesclam com as lendas do banco, então, inevitavelmente, seus sonhos também.
Hoje faz um ano desde que a última sonhadora da cidade morreu. É um dia de
tempestade em que eu me encontro trancado fora de casa, com as chaves perdidas sabe-
se lá onde. Encharcado e sem ninguém a recorrer, esperei a chuva passar na fachada do
antigo banco. O movimentado e metropolitano centro financeiro da cidade está, agora, em
ruínas. É um glorioso e decrépito estandarte capitalista de memórias e lendas passadas.
De arquitetura eclética, suas paredes mofadas exibem musgos expansivos, como cabelos
verdes mal cortados, enquanto a cúpula central tem parte do revestimento faltando, que
deixa inundar o casarão por chuva, raios lunares e quaisquer outros parasitas. Esses são
aqueles detalhes que seriam imperceptíveis se não fosse o dia de hoje: o primeiro
aniversário em que a cidade deixou de sonhar.
Eu e o banco temos uma amizade de funeral. Nós dois éramos próximos da
falecida, mas não temos nenhuma relação própria. Deixamos as flores no túmulo e agora
ele me sacode desabafando em desespero. “Quero ser um hotel, uma casa de festas, um
teto para alguém morar, que seja, qualquer coisa! Eu apenas quero viver! Minhas
memórias e sonhos escoam por minhas tubulações antigas. Se eles acabarem de escoar
para o esgoto e desbocarem no infinito oceano vazio de lendas e sonhos perdidos, quem
eu seria? Onde está a sua vó? Onde está o sonho da cidade? Sem eles, quem eu seria?
Quem eu seria sem uma memória, uma paixão, um propósito? Quem eu seria?” O banco
me conta que os agentes financeiros são indiferentes a sua súplica. Eles o deixam
abandonado e esperam que algum outro agente financeiro banque sua reforma. Caso
contrário, sua vida não é necessária. Afinal, de acordo com os engravatados, o banco do
lado da minha casa é só um prédio velho. Não há cor. Não há sonho. Não há lenda. Há
apenas cidades, pessoas e bancos regidos por sonhos e lendas tolas. Um banco deve ser
um centro financeiro tão cinza quanto outros agentes financeiros, nada mais. Acho que
entendo melhor o banco, foram eles que fizeram a cidade deixar de sonhar.
Enquanto me abrigava da chuva, encarava o velho relógio que ficava
simetricamente na mesma linha que a cúpula quebrada, uma decadente janela suntuosa
e a porta principal de entrada. Seus ponteiros estavam parados, possivelmente há
décadas, e marcavam dois segundos para a meia-noite. Eu sabia que não era meio-dia
quando o relógio parou, não existe um resquício de luz no fim de um tempo.
Sem saber como puxar assunto com o banco, numa situação socialmente um tanto
desconfortável, principalmente depois de não responder direito ao seu desabafo, fiquei
naquela mesma posição, escorado em uma coluna, hipnotizado pela estática passagem
de tempo do banco e do relógio. Em instantes de segundos ou minutos ou horas, o relógio
passou a funcionar inversamente, as gotas de chuva subiam para as nuvens, os
descabelados cabelos verdes do banco se retraíam, deixando-o careca e bem-
apresentado de novo, a cúpula era consertada, as pessoas voltavam a circular. Em
poucos instantes de segundos ou minutos ou horas, o banco voltava a viver, a sonhar e a
recordar. Em poucos instantes de segundos ou minutos ou horas, o banco pôde saber
como é o agridoce gosto da paixão e do sofrimento, da esperança e da saudade. Estava
vivo e sentia. Sentia por se lembrar de como é recordar e sonhar. Não estava mais
sozinho, estava emaranhado por lendas e sonhos alheios, de pessoas, cidades e outros
bancos. Fazia tempo que ele não era alvo de histórias fantásticas e, por isso, sorria, como
um bom anfitrião, abrindo sua porta para mim.
É no movimento dialético entre o sonhar futuros e o recordar passados que se cria
o presente. Nesse momento, entro no antro dessa relação, por dentro das intimidades e
vísceras da realidade, no único ponto do universo onde esses mundos se encontram em
sua totalidade: no banco das lendas de minha vó, no banco dos meus sonhos e no banco
da minha frente, produzido pelos dois anteriores. Nenhum deles traz, na sua essência, o
mundo cinzento que a cidade clama. A realidade não tem tempo nem força de vontade
para apagar as cores dos lugares em que elas sempre existiram. Ah, se os agentes
financeiros soubessem disso…
“Já estamos fechados, todos já foram embora.” Mesmo por trás das cortinas da
existência, infelizmente, ainda existem banqueiros, e um deles fala comigo. Saco duas
moedas de cobre. O leitor médio pode considerar que, coincidentemente, vagavam no
meu bolso naquele específico momento, e repito os dizeres de minha vó: “A moeda que te
dá ofício me dá a vida”. Com um longo suspiro e clara má vontade, o banqueiro abre a
escadaria secreta, permitindo ver degraus de concreto e ouvir a música cristalina do mar.
Sigo meu caminho e, ao invés da terra encantada prometida, encontro o infinito oceano
vazio de lendas e sonhos perdidos.
“Eu disse, todos já foram embora.” Não entendo. Como sonhos e lendas podem
sumir se o mundo é formado por eles? Só posso entender o real se eu o traço com a
varinha mágica do irreal, do fantástico. Vago por cima do eterno e monótono corpo
d’água, suas ondas não me alcançam. Embaixo de mim, estão todas as lendas e sonhos
que já existiram e vão existir. Nenhuma me toca, nenhuma ousa se aproximar. Não
entendo se sou repulsivo ou se sou eu que as temo. Não importa. Não importa se o banco
foi abandonado ou se a cidade deixou de sonhar, aqui ainda deveria ser a terra encantada
onde chove chocolate, mas não é. Você não estava lá.
Um infinito oceano vazio de lendas e sonhos perdidos traz, consigo, tudo. Não, eles
não foram embora. Eles estão todos nessa sopa primordial, dos palácios de reis malucos
até os cinzentos agentes financeiros, pois eles são regidos por isso. É tudo uma questão
de perspectiva. Eles sempre estiveram aqui, até você, mas só aquele que sonha
consegue ver, como minha vó. Um infinito oceano não é nada para a grande cidade que
não sonha, mas é tudo para um único sonhador. Então, ergo castelos e árvores, crio
dragões, fadas e agentes financeiros, traço as rotas de seda e construo máquinas
mirabolantes, escrevo personagens históricos e filosofias, pincelo o mundo com o mal,
com o desejo e com o sofrimento, ao mesmo tempo que diluo sua tinta com a esperança
e o amor. Essa é a matéria-prima do sonhador, um oceano com todas as lendas e sonhos.
Aqui, crio você e crio a chuva de chocolate. O luto pela morte de alguém próximo e sua
última festa de aniversário, a primeira tarde com o amor de sua vida e uma noite solitária
de remorso, os espinhos de rosas sem pétalas e campos saturados de infinitos girassóis
que se confundem com estrelas. Algo um pouco além de pessoas, cidades e bancos.
Ao subir aquelas escadarias, só poderei levar uma coisa como recordação. O resto
voltará a fluir entre o infinito oceano vazio de lendas e sonhos perdidos. Por isso, dentre
todas as coisas que arquitetei, dentre todos os mundos, universos e realidades que criei
em minha pequena oficina infinita, escolho abandonar tudo e levar apenas o sonho.
Assim, me torno o último sonhador da cidade.
Minha cidade voltou a sonhar.
Esses foram os contos escolhidos por Fernanda. A artista adorou cada um dos contos que foram escritos a partir de suas obras. Abaixo você confere os demais participantes do concurso.